Entre,sinta-se à vontade. Não repare as estranhezas,as belezas...

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A Criatura

No corredor do hospital, o que comumente se entende por amorfo e relativo, passa a adquirir formas, tamanha a exuberância dos sentimentos ali embutidos. Os sentimentos dos indivíduos ali hospedados, se acumulando ao longo de inúmeras gerações, move lentamente os braços que agora possui. Se movendo por um árduo rastejar, até que as dores sejam exorbitantes, e se decorra por completa a transformação.
A Criatura, se levanta, exibindo suas novas conquistas, de iniciar um caminhar acompanhado de uma expectativa, cuja falta do componente na formula impede a denominação de felicidade. Evidentemente, não é visível aos olhares humanos. Mas, como muitas coisas que não são tangívéis, afeta os homens.
Naquele ambiente, haviam divagações; divagações sobre coisas diversas, sem deixar de lado aquilo que o homem não pode compreender ao certo. É sabido, que se os homens apenas falassem sobre o que compreendem, logo o mundo estaria em silencio.

Em instantes, o corredor do hospital se ilumina, não propriamente como uma chuva de cores, mas uma claridade denunciando um forte vigor na limpeza do ar. Se torna espantoso a velocidade de abertura de expressões nos olhares dos pacientes. Muitos estavam ali à tempos, amargurados pelo destino incerto, enfraquecidos pelas dores físicas e ociosos com os sentimentos que nem sequer sabem valer a pena transparecer ou até se devem mesmo sentir.
Parece não ser simples estar a espera do correio e, ao invés de uma boa correspondência da lembrança de ti por alguém, com sorte acompanhada de uma caixa de chocolates, receber uma carta da morte.

Os passos da Criatura, cada vez se tornando mais firmes, sombreiam mais e mais a limpeza e perfume do ambiente. Abrem-se também, personalizando os olhares, diversos sorrisos. É reconfortante um momento de tranquilidade após longas preocupações e pensamentos. A primeira reação de muitos, é a dança. Para os menos habilidosos, estranhos saltos e movimentos desritmados do corpo; já outros preferem não se arriscar, escolhendo os abraços. Os sentidos conferem largo poder sob os homens, sendo ou não totalmente enraizados nos instintos biológicos- podendo levar a loucuras e em péssimas hipóteses ao adiantamento da carta da morte- são no geral, a diversão que sempre se procura. Contudo, não são todos os festejadores agindo mesmo sem saber ou enxergar o porque, alguns, seguem ao que sempre foram, mesmo antes do inicio da fase do hospital; agem como um blasé, cuja denuncia revela o tédio ou a forma única em que conseguem ver o mundo, sempre o mais do mesmo, outros revelam o jeito de sempre manter as dúvidas na vitória sob os sentidos, prejudicando-os, é claro, mas favorecendo em diversas vezes, a conquista nas lutas contra as decepções. Mas para estas pessoas, a novidade da falta da dor física já é positiva, mesmo não havendo mudança nas aparências.
A maior claridade, oriunda da porta, chama a atenção da Criatura, instantaneamente guiando seus passos nessa direção. Formada de ingredientes reflexivos, oscilantes mas sobretudo fortes, ela conseguia perceber naquele ambiente do hospital, sua segurança. Mas os mistérios do desconhecido, a ansiedade por surpresas impulsionou sua decisão de continuar caminhando.
A variedade de formas, tamanhos, cores, funções no novo campo de visão, impressionava a Criatura. Pois é, mesmo os mais fortes pensamentos e ideologias perdem-se por algumas belezas.
O resultado poderia ser apenas uma inversão de conceitos. A medida em que a criatura absorvia os sentimentos positivos causados pelos deslumbres, radiava para fora de si, sua matéria pesada. Aquilo afetou cruelmente as pessoas. Evidentemente, muitas delas não sabiam o que era pensar, questionar, duvidar; ao contrário do corredor do Hospital, elas não precisavam se preocupar com a carta da morte, e, as vezes, os padrões pré estabelecidos são tantos que não havia como se desligar das ilusões a estas sempre impostas.

Nunca se vira o ar tão cinza, tão fechado. É claro que os pensamentos por si só não são algo ruim, mas na ocasião em questão, por representarem o desconhecido, pegou os cidadãos de surpresa. Foi o Terror. Arrancaram lhes à força a felicidade, a segurança; muitos ficaram fatigados, a espera da cartilha montada pelas propagandas coloridas. Mas não haviam mais cores.
As grandes corporações perceberam que precisavam fazer algo. Tudo se encontrava morto, não havia como denominá-los de seres humanos, portanto estavam correndo o risco de chegarem elas próprias a um fim. Acabou-se recorrendo ao governo, e por debaixo dos paninhos agora sem cores, fora prometido as mais novas artes, inimagináveis, pagadas é claro, quando ocorresse o retorno ao que comumente se conhecia.
O governo tentou conscientizá-los. Contudo, ninguém nunca ouvia o governo, e evidentemente, consciência nenhuma surge assim de fora. Então o governo decretou uma lei proibindo a tristeza. Mas, a falta de domínio nas reflexões só podia levar a ela, ao caos. Nas ruas, as pessoas passaram a chutar os carros, destruir o comércio, incendiar os bancos. Pois é, tristeza sem controle pode acabar levando a raiva.
Parece que beneficiados mesmo, foram apenas os planos funerários, tiveram um exímio crescimento, nunca antes registrado, ao contrário dos bancos, evidentemente afundando cada vez mais na lama da crise. O resultado representou o auxilio recorrido junto a Igreja. Esta inverteu seus conceitos. Outrora, já havia feito isso, isto é, por deveras vezes. É sabido que tentou explicar o que era o bem e o mau. Começou com Deus, que criou o bem, mas era um ser perfeito e não pode ter sido o criador do mau. Então Deus criou o bem e um anjo decaiu e por si criou o mau. Mas, não, não, sendo o anjo o criador do mau, na lógica, por ter sido criado por Deus, remete a este a culpa da criação do mau. Então, se volta novamente. Define-se que o mau não existe. Existe o bem e a ausência dele; sendo pois, a base do pensamento ocidental cristão. O tal do Deus existe, não se confirma em provas, mas se não existe a partir do que subtende-se por ele, existe a partir da crença que as pessoas conferem a sua existência. Isso gerava medo. Alguns seres instigados, acreditavam por segurança, mas ninguém poderia saber
ao certo. Fato é que, não havia mais o medo. Assim como não havia o juízo de valor entre o certo e o errado, o bem e o mau. Portanto, a maior vitória da Igreja refere-se a alguns fiéis em sua porta; mas estes já não podiam oferecer nada.
A Criatura continuou sua caminhada por longos anos. Parece sempre haver tempo pra se encantar. Mas, sua essência era reflexiva, e em algum momento, passaria a utilizá-la. A Criatura percebeu que tudo aquilo era meio externo a si e propriamente não duradouro. A beleza nunca fora forte pra vencer o tempo. E, a Criatura sentiu o vazio. Fora atingida pela solidão.
Mantinha suas caminhadas, no peito, sempre o aperto cujas formas nunca permitem saber ao certo o que é.
Em mais um belo dia, agora chuvoso, porém com magnânimos orvalhos, a Criatura encontrou uma casinha, e dentro dela, um músico. Ele passava todos os seus dias na companhia dos livros e de seu gato, além de seus instrumentos, é claro. Parecia em paz. Sabia sentir afeição, dar carinho, sabia usar sua criatividade, sabia ser livre, pensar e fazer por si. Não fora afetado pelo ar cinza, permanecia com o que lhe era o bastante e assim, a Criatura pode vê-lo.

Naquele instante, e a partir de então, a Criatura desejou ser uma mulher. Queria seduzi-lo, sentir o que imaginava ser perigosamente humano, porém, ser de todo, algo como vida. A Criatura sabia que não poderia abandonar o que era, por isso sentia dor. O mundo voltara ao normal. A felicidade da ignorância, a ignorância da felicidade. Mas não se contava com uma coisa. Intermitência...
E, de repente, a leveza constante do músico fora interrompida. Havia deparado com uma bela mulher, do tipo com um corpo magro mas de curvas marcantes e um par de olhos esverdeados que brilharam concomitante ao sorriso que ela lhe transmitiu. Segue se sentimentos impossíveis de serem explicados.
Um par de mão dadas, e um novo caminhar, foi o ocorrido. A partir daquele dia, não se sabe o que as pessoas a fora sentiam. Eram donas de sua própria vida.