Entre,sinta-se à vontade. Não repare as estranhezas,as belezas...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Relógios



Duy Huynh

Olhou para a fumaça do cigarro elevando-se e tentou visualizar alguma forma capaz de distraí-lo da angustia, de esperar solitário pelo ônibus na madrugada fria. Seus pensamentos voaram com ela, percorrendo o tempo que chamava de seu. O frio, o odor do cigarro, lhe fez resgatar uma cena similar, de garoto, quando soprava por entre os dedos, aproveitando-se da neblina para fingir ser um adulto fumante, como se pudesse brincar com o tempo. Apagou a brasa, poluiu a rua, olhou sua mão e brincou, tentando fazer o contrário, no desejo desesperado do tempo voltar para trás.

Decidiu trocar o passe pelo passo, e caminhar. Até o final da noite restavam horas e sabia que suas reflexões não o deixariam dormir. Em cada passo, atentava a percepção de seus movimentos, as pernas, direita e esquerda alternando-se á frente, os braços num ritmo mais acelerado, tudo lhe soava como um tempo eterno. Denis se assustava com a relatividade do tempo como uma criança teme o barulho do trovão, quando nada pode ser feito, apenas desejar que as palavras dos mais experientes sejam capazes de aquietar aquele medo. O rapaz intrigava-se ao imaginar a imensidão de detalhes que teriam passado despercebido em seus dias. Era obcecado com a idéia de manter o controle sobre a sua vida, mas a intensidade dos fatores externos cada vez mais inibia a sua ilusão.

No passar das ruas, Denis brincava de quebra cabeça com as suas lembranças. A casa rosa da Rua 10 o transportava aquele garoto viciado em fumar neblina, que além de trapacear o tempo á frente, já olhava para trás. O pequeno Denis olhava suas fotos de bebê e se instigava, por não se parecer consigo mesmo. O Denis adolescente, como quase todas as suas partes, por vezes, pulava as casas no seu tabuleiro da memória com um sentido filosófico, não para reviver, mas refazer, resolver as lembranças, buscar a compreensão do agora a partir do outrora, a reaparição do feito e do ido.

Ele chegará à rua depois do beco, e o cheiro dali já lhe aguçavam novas velhas histórias. Havia um pé de amora, que uma hora virou amor, quando o menino teve o seu primeiro beijo. Depois daquele dia, imaginou muito o futuro. Garotas de lingerie e botas de salto alto dançando sensualmente pra ele, e o prazer.

De fato sua vida teve muitos momentos prazerosos. Mas Denis não compreendia o tempo e se perdia. Às vezes ali dentro, outras fora. Odiava quando ligava o piloto automático e depois de dias despertava assustado com o passar dos meses, sem adquirir as figuras novas pra coleção.

O rapaz ouviu o latido do seu cachorro, e percebeu já estar em casa. Deitado em sua cama, ele embora cansado, não conseguia pregar os olhos. Teimava em olhar o relógio, odiando o passar das horas. No que soava como a milésima vez, não parecia o ponteiro se pondo a girar, e sim o relógio todo. Adormeceu. Despertou com um jogo de luzes em seu rosto, e estranhamente, um som alto incomodava lhe os ouvidos. Esfregou os olhos. Estremeceu, estava de pé numa balada. Mas, era como um déjà vu, confirmado quando Natália apareceu com aquele drink de cor azul que ela havia lhe pedido. Desnorteado, pediu licença.

Denis, tonto, apagou e acordou novamente em “outro plano”. Dessa vez, numa briga com a sua mãe. E aquelas coisas não paravam, ele corria, mas ali já estava seu melhor amigo repetindo-lhe seus conselhos. E conforme corria e fugia, o amigo o insultava, com as palavras mais horríveis que nunca quis ouvir. Não havia vivido aquilo, e desejou profundamente que se um dia aquela loucura acabasse jamais quereria viver. Ofegante, sentou seguido de outra mudança. Estava ao lado do telefone, no momento antigo em que não conseguiu, mesmo sendo sua vontade, ligar pra ela. Um dos momentos em que conseguiu por tudo a perder. Agora de volta, a perca, parecia ser de si próprio.

Tontura, delírio e medo transbordavam o seu corpo. As coisas repetiam-se, criavam-se, como a cena, dele já mais velho, tocando piano num teatro lotado. Mas os diálogos mentais, as recordações e reformulações eram as notas que o perseguiam. Denis só conseguiu gritar.
O grito o transportou á um quarto, e em sua mão, percebeu uma arma. Hesitou, mas acabou por apontá-la a si e atirou.

Pensou ser o fim, mas viu sua imagem no espelho. Estava pateticamente apontando a arma feita de dedos para si. Abaixou a mão, levando ao peito, sentiu sua respiração. Sabia que agora era real. Percebeu que estava barbudo, mas não sabia quanto tempo havia passado, mas já não importava mais. O único tempo que almejava, era o de recomeçar.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Acordar

Os olhos de Luciana se abrem, relutantes, piscam algumas vezes, se desembaçam. Acordar é o momento de Lucidez intensa. Ela se situa, saber onde está aflora as sensações mais recentes, e sempre procura o relógio, mesmo quando as horas não importam. Luciana até tenta ignorar a lucidez, quer dormir um pouco mais, desesperadamente relaxar, mas em sua mente, a inquietação é evidente, e ela se torna espectadora daqueles pensamentos que parecem ter vida própria. Ela, então, tenta driblá-los pensando sobre o que havia sonhado, mas logo o anseio por um possível significado a recoloca na platéia. Mesmo sem vontade, ela acaba por levantar.

Luciana é solitária. Mas Luciana esconde um segredo. Já foi Carolina. Carol era misteriosa e valente. Luciana é descrente.

Luciana toma o café e diferente do de Carol, o gosto é amargo. Ela detalhadamente arruma a sua bolsa. Ela gosta de saber o que poderá precisar, e certamente, levará muito mais do que o necessário, o ato lhe confere uma sensação de independência. Carol nunca foi tão organizada, é impulsiva, e sempre teve medo de que as coisas lhe trouxessem um vazio.

Por ultimo, Luciana coloca na bolsa sua máquina fotográfica e seu mp3 de grande valor. Carol valorizava mais o fone.

Carol talvez gostasse de ir a onde o vento for, mas Luciana teve de se acostumar a caminhar até o metrô. Por vezes, as garotas entram em conflito, porém, os valores de Luciana acabam por paralisar a Carol. O silêncio é sempre o ponto de encontro de ambas.

Carol costumava pensar que o medo parava na infância. Luciana sabe que não. Como uma irmã mais velha, que almeja proteger a menor indefesa, Luciana ensinou a Carolina a ignorar. Ignorar o amor, contornar os desafios.

Carol queria ser cineasta, achava mágico, que o homem pudesse ter se frustrado com a imagem estagnada na fotografia, e a desejasse vê-la em movimento. Ela pensa o cinema como a capacidade de tornar coletiva a imaginação. Ela instigava-se com os mistérios da imaginação. Luciana tornou-se fotografa. A possibilidade de visualizar algo com mais precisão, em mais ângulos, detalhes, lhe transmitem sentimentos de segurança e compreensão. E para ela, assim, a imagem se torna resistente ao tempo. Ao contrário de Carol, a ansiosa, Luciana espera o tempo passar e segue os seus dias, mesmo sem saber o porquê.

Já no metrô, Luciana caminha devagar. Não gosta de ser esbarrada, parece ter seu próprio mundo. Ela aumenta o volume do seu mp3. A música alta, a aliena, funciona como um escudeiro para isolá-la e protegê-la de todas aquelas pessoas, mesmo que, mais uma vez, ela não saiba o porquê. Já Carol, ali ao fundo, adoraria descobrir os mistérios da humanidade. Talvez encontrar alguém em especial, e viver as coisas mais belas que somente ela consegue imaginar.

A existência dessas duas garotas não permite compreender se as pessoas realmente mudam, ou simplesmente se adaptam. O tesouro de uma é a essência e o de outra, a mudança. O mais poderoso entre estes, só existe para cada uma delas. Enquanto isso, Carol e Luciana permanecem ali, disputando aquela coisa que se torna um motivo maior, algo que as façam sorrir e dormir tranquilamente, para talvez, algum dia, apenas uma acordar.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bipolar

Alfredo teve a impressão de ter despertado pela segunda vez naquele dia. Observava a paisagem pela janela quando notou o cenário se movendo com mais velocidade. Assustou-se, o trem só poderia estar desgovernado. Olhou á sua volta, todos pareciam estar calmos, no máximo preocupados com suas obrigações e horários. Alfredo não estava entendendo, notava os objetos ficarem para trás numa velocidade inumana. Tentou respirar fundo e percebeu seu coração pular tão intensamente como o movimento do mar batendo em uma rocha nos piores dias de maré. Estremeceu-se. Então percebeu que seu olhar não perdurava nem mesmo um segundo em cada pessoa daquele trem. O problema estava nele.“Eu vou morrer”, sentia. Seus pensamentos giravam em torno de infinitas coisas, sem conexão alguma entre umas e outras, mas todas lhe davam tontura e aumentavam a sua náusea. Ele sentava-se e levantava-se repetidamente, como uma criança brincando de “vivo ou morto”. Alfredo conhecia aquela sensação. Era ansiedade, mas uma ansiedade absurda, extremada, inimaginável. A comoção aflitiva dos seus sentimentos refletia o formigamento de todo o seu corpo. Parecia que derreteria em instantes. Por sorte, a porta do trem se abriu.

Alfredo correu. Correu tanto, que não notara nem mesmo quando trombava em alguém. As pessoas não perceberam nada fora do normal. Alguém atrasado, locomovendo-se a toda velocidade, por “n” motivos e principalmente para não ouvir sermão do patrão, era comum naquela estação. Talvez em todas. Alfredo correu e correu. “Deus do céu o que fazer”, “O que estou pensando, nem mesmo acredito em Deus”. “Só queria voltar a estar no controle, será que estive algum dia, ou sempre fui escravo de meus sentimentos?”... Alfredo caiu, desmaiado. Seu corpo suportou até mais do que imaginava ser capaz.

De repente, acordou. Estava encharcado de suor. O seu âmago aquietara-se. Alfredo riu calma e desesperadamente. Tentou lembrar-se. Teria tomado café demais? Sempre quis fugir. Só não sabia de que. Teria posto seu plano em prática e teria se perdido? Começou a pensar em todo seu dia, toda sua vida, com uma descrição formidável dos mínimos detalhes. Percebeu que sentia uma paciência indescritível. Podia mapear a sua respiração. Observava todas as coisas por horas e horas, como se fosse a personificação da esperança pulando de canto em canto, em busca do almejado.

Alfredo seguiu seu caminho de volta. Olhava atentamente cada partícula de mundo. Tentando desvendar a formula deste. “Alfredo no país dos clichês”, “A volta ao mundo em um só dia” “A Guerra das estrelas, ou dos egos”. Alfredo brincava consigo mesmo. De todas as coisas vistas, lhe chamou a atenção o fato das cenas serem as mesmas para as pessoas, porém as percepções tão distintas. Como o segredo revelado no olhar do pai que caminhava de mãos dadas com seu filho e sentia felicidade por acreditar estar apenas auxiliando-o a pensar por si próprio, e ao mesmo tempo o olhar do garoto revelava sua vontade de ser como o seu pai. Ou como o debate acompanhado por ele, onde dois vizinhos discutiam o porquê de um cachorro ter deitado justamente no espaço do chão que no dia anterior um homem havia morrido queimado com a explosão de seu carro. Um achava ser um sinal divino, uma espécie de reencarnação, o outro pensava no cão como esperto, procurando apenas se aquecer no espaço ainda quente. Ou mesmo um grupo de adolescentes rindo porque cada um enxergava uma cor de uma forma diferente, uns viam mais claro, outros mais escuro e ainda tinha aqueles que visualizavam outra totalmente desconexa.

O luar iluminava seus passos de tartaruga. Alfredo foi se cansando. Talvez o mundo seja bipolar. Não, múltiplo. Ainda se surpreendia com suas obviedades, mas continuava sem respostas e as vezes tinha medo de tanta relatividade significar que nada era real. Alfredo nem mesmo sabia o que era pior, tudo ter ou não um sentido. Alfredo sabia que nunca seria como alguns dos outros e se agarraria numa verdade absoluta. Só podia contar com a sua inconstância.


Vote Nulo!

No próximo fim de semana, você irá exercer cidadania. Penso ser instigante o como algo que nos é obrigatório pode representar o exercício de ser cidadão.

Quando o voto é obrigatório, torna-se mais suscetível ao controle das mídias. Somos obrigados a aceitar uma posição, selecionar uma propaganda, nem que seja a que nos soe “menos pior”. Sem mencionar toda a manipulação capaz de existir para nos convencer qual determinado lado é melhor.

Exercer cidadania deveria ser mais do que isso.

Sabemos ser desesperadora a realidade de corrupção no país. É difícil encontrar pessoas que sintam prazer em votar, que saibam o que estão fazendo. Mas é muito fácil encontrar pessoas para se candidatar.

De desespero, a situação eleitoral no país foi para hilariante. É comum ouvir das pessoas que votarão no Tiririca porque ele é um palhaço, que só veio para ridicularizar o circo que já é o governo. As pessoas se esquecem, ele só faz isso para conseguir o seu voto. Não será assim ao se eleger. A popularidade dele pode ajudar os outros políticos do seu partido, o PR. E mesmo se eles não chegarem ao parlamento, consagrados nas urnas, sem dúvidas estarão por trás do palhaço, governando. Com Tiririca subiriam Valdemar Costa Neto, prefeito de Mogi das Cruzes em 4 mandatos, ruins, e deputado federal envolvido no escândalo do mensalão. Subiria o polêmico Garotinho, ex-governador do Rio de Janeiro, entre outros.

Se o Tiririca fosse realmente agir como um palhaço no congresso, e causasse uma espécie de terrorismo poético, ele teria meu voto. O terrorismo poético talvez pudesse causar anarquias, deixar as pessoas mais próximos do comando, e iniciar alguma mudança que seria construída na prática, e não teorizada por alguns. Mas isso parece utopia. E, de fato é, se dependesse apenas de um para inicia-la, e esse um ser o Tiririca.

Chega de arriscar a sorte com o "menos pior". Dentre nossos canditados, ele não existe.

E lute para que o Voto Nulo signifique de fato a anulação de uma eleição. Não queremos mais ser tratados como trouxas por estes políticos. Não é mesmo?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Os Quadrinhos (Parte 1)

Quadrinhos. Ou mesmo quadradinhos, como costumava observar na infância. Quando era uma pequena criatura, visualizava os quadrinhos ilustrados e os compreendia como pequenos universos paralelos, cada qual moldado nos seus quatro lados. Observava os diversos e diferentes mundos, me envolvia em suas formas e nos seus enredos, e acreditava que estavam sempre protegidos pelos contornos daquela forma geométrica, e caso houvesse necessidade de se expandir, bastaria acrescentar um novo quadradinho, repleto de espaço e possibilidades.

A “Arte Sequencial” na forma de História em Quadrinhos, ainda é alvo de inúmeros preconceitos. Pode-se dizer, por se constituir da simbiose entre palavras e imagens, que a percepção dos quadrinhos é uma leitura num sentido mais amplo do comumente aplicado ao termo, sobretudo por serem diferentes os processos de transição e aceitação destas simbologias, além de chegarem ao receptor por mecanismos psicológicos também análogos.
Deste modo, esboçar o inicio da interação da escrita e o auxílio de figuras pode ser falho. Sem dúvidas, na sociedade contemporânea, aceita-se que a imagem completa um texto e vice-versa, além da relação entre estes deixar a comunicação mais atrativa e dinâmica. Contudo, a sociedade veio modificando suas formas de comunicação, correspondendo aos fatores determinantes nas épocas, nas palavras do famoso teórico de mídia, Mcluhan, “a modelagem social se refere muito mais a natureza do meio atravez do qual os homens se comunicam, do que pelo conteúdo da comunicação”.
Para não citar as culturas da antiguidade, cuja utilização dos sinais corresponde a uma necessidade mais distante, sabe-se ter existido no século XVI, pinturas que traziam consigo legendas. O fato não teve a popularização devido a arte ser vinculada apenas aos reis, a elite, sendo que estes financiadores, em sua maioria não sabiam ler. Assim, toda e qualquer expressão deveria estar inserida na figura. Já em meados do século XIX, no pós era das revoluções, francesa e industrial, passa haver circulação da cultura, movida pelo intuito racionalista, bem como a mudança do entreterimento aos nobres para o conhecimento do homem pelo mesmo. O terceiro estado emergente com seus ideais libertadores populariza o folhetim e o jornal como propagadores das mudanças. E são nestes meios, que se solidificam as raízes da palavra e a ilustração, iniciando-se com a propaganda, posteriormente os quadrinhos e por fim a fotografia.

A ideia, é utilizar o singelo espaço, para fugir das criticas a esta arte, e mostrar um pouco de sua história e seus infinitos significados. Infinitos pois muitas Hqs além de contar uma estória, nos envolvem em psicologia, história, política, etc. Outras criam técnicas de humor ou suspense, trejeitos, ações típicas que se tornam atemporal. A meu ver, um aspecto essencial é a imaginação. E, não é possível analisar um estudo coerente da mesma. O duelo entre biológico e social, além da análise daquelas pequenas diferenças que perduram nos seres, tida como personalidade são por vezes relativos e muitas vezes incerto. Para os historiadores, os indivíduos são o reflexo e a interação de sua época. Não existe um indivíduo a frente de seu tempo, quando decorrem diferenças, elas são fruto de hábitos de uma conhecida época anterior ou devido a compreensão abrangente da sua própria, podendo levá-la ao choque e resultar em mudança. Mesmo aceitando este conceito, o campo da imaginação não é plausível de mapeamento. A ideia portanto, não é ignorar ou julgar a imaginação, apenas esboçar dentro das grandes possibilidades, os significados, inspirações e diálogos que os cartunistas expõem.

Sem mais delongas, os quadrinhos. A definição das primeiras histórias em quadrinhos também é controversa. Para Will Eisner (The Spirit), ela deve-se corresponder a uma forma de arte sequencial, ou seja, acontecimentos descritivos e ilustrados que detém sequencia. A maior aceitação do nascimento dos quadrinhos, corresponde ao The Yellow Kid do artista norte-americano Richard Outcault, publicado no New York World, em 1895, por ser o pioneiro a utilizar o “balão” no quadrinho e contar com um personagem fixo. Contudo, se é válida a definição de Eisner, outros artistas que utilizam a narração em suas obras podem ser considerados os precursores, mesmo que a narração se mostrasse como uma legenda e não estivesse esboçada dentro do quadradinho. Desse modo pode-se citar o suíço Rudolph Topffer, o alemão Wilhelm Busch com seus travessos personagens Max e Moritz (Juca e Chico traduzidos ao português por Olavo Bilac) e o italiano naturalizado brasileiro, Ângelo Agostini.

Topffer em seus quadrinhos aborda uma influência nas pinturas de William Hogarth, cuja série “The Harlot’s Progress” de 1731/32 mostrava a história de uma mulher que devido as dificuldades de adaptação a Londres, se torna uma prostituta. Topffer dedicou-se a literatura. No entanto, estabeleceu em alguns de seus trabalhos, o texto auxiliado pela imagem. Infelizmente os dados sob Topffer e suas histórias são escassos. Em 1842, foi publicado nos Estados Unidos o The Adventures of Mr. Obadiah Oldbuck, obra tida como importante no estabelecimento da simbiose imagem e texto.








Os quadrinhos de Ângelo Agostini são objetos de estudo de escravidão para alguns historiadores da época. No desenvolver do período suas ilustrações foram importante instrumento de propaganda abolicionista. No entanto, seu primeiro personagem fixo surgiu no “Vida Fluminense” em 1869, com o título “As Aventuras de Nhô Quim, ou impressões de uma viagem à Corte” cuja narração aborda as aventuras de um caipira na cidade grande. O autor era dono de uma forte qualidade sátira. A história é desenvolvida em uma série de situações hilariantes, e se constitui mais por variações em torno de um mesmo tema que um enredo contínuo com começo, meio e fim, mesmo havendo entre as publicações, um espaço para pressupor sua continuidade no número seguinte do jornal. Agostini utiliza técnicas que tempos depois foi incorporada nas historias em quadrinhos, como a sucessão de vários quadrinhos utilizando um mesmo cenário de fundo. “As Aventuras de Zé Caipora seguem as mesmas técnicas, com poucas diferenças nos traços do personagem e “diálogo” social que seu primeiro título. Foi publicada de 1883 à 1886 entre as revistas “Revista Ilustrada”, “Dom Quixote” e o periódico “O Malho”.

Nhô Quim: na imagem acima, o caipira atrapalhado com o espelho, nesta nota-se a interação do personagem branco e do negro.


O Menino Amarelo, não foi a principio assim nomeado por Outcault. Down Hogan’s Alley era o título da série publicada no jornal americano New York World, retratando a vida dos imigrantes no cortiço de New York. Um garoto chinês, sempre vestindo uma curiosa camisola amarela, ganhou destaque e acabou recebendo seu batismo pelo público. O autor também se utilizava de uma forte sátira, e suas técnicas o consagraram como pioneiro sobretudo por além do balão, a inserção de onomatopéias e diversificação de linguagens e mensagens, pois o menino trazia uma frase em seu pijama. The Yellow Kid detém como marco a relação que os quadrinhos vivenciaram em seu ínicio com o jornal. A proximidade era exacerbada de modo que as criticas dirigidas ao personagem, a sua diferente realidade e linguagem vulgar, foram transmitidas a todo jornal, e imprensa amarela passa a ser sinônimo de mídia sensacionalista.
O outro personagem do autor, Buster Brown, Chiquinho no Brasil obteve maior sucesso. O humor permanecia, contudo o cenário era distinto, sendo o menino travesso parte de uma família rica.





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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Formas : Um conto de amor risível

Ela caminhava para o trabalho, e como de costume, observava todos os contornos dos objetos que compunham a sua paisagem cotidiana.
Ela contava quatro prédios quadrados antes de criar uma meia lua ao passar de uma rua a outra, onde brincava com seu imaginário corredor retangular, formado pela distancia entre as árvores. Sabia estar completa a sua brincadeira se chegasse na linha de travessa da ponte antes dos carros, pois assim não comprometeria seu horário. Mas isso raramente acontecia, talvez por ela tanto se distrair com a paisagem, muitas vezes buscando uma parte nova, como se tudo escondesse algo dela.
Ela se sentiria sem contorno se fossem destruídos todos aqueles pontos com os quais criara uma identidade. Por mais que sempre olhasse atenta em busca de diferenças, principalmente pessoas de diferentes formas, se sentiria perdida, sem experiência, e não saberia poder contar com uma memória histórica para além de seguir as maneiras estabelecidas, entender contextos e origens, e até almejar se surpreender e se renovar.
Ela e ela mesma viviam em constante desentendimento. Se incomodava com sua forma interior, sem fundo. O caráter introspectivo, enquanto o exterior era solidamente tímido.
Para Ela, sentir vergonha era como um descompasso. Enquanto o compasso dos outros desenhava um circulo, o dela formava um prisma.

O dia dele não havia começado como um dos melhores. Acordara todo quadrado, resultado de uma noite ruim de sono. Ele gostava de colorir tudo o que fazia com intensidade. Não era diferente com dormir.
Ele, mais do que observar, gostava de decifrar as coisas. Tinha inúmeras teorias, as quais etiquetava os objetos e pessoas a sua volta. Ele sempre utilizava suas teorias para chocar as pessoas. Se sentia bem deste modo, talvez porque ele mesmo fosse totalmente cético.
Ele costumava colocar todos os seus sentimentos em diferentes caixas. Mas suas caixas nunca cabiam em nenhuma estante.
Decidido a colocar seu mal humor em uma embalagem triangular, quase desistindo no momento em que derrubou leite na sua calça e teve de trocá-la, seguiu para seu dia, no mínimo diferente, por ter uma folga num período do trabalho, para resolver um empecilho familiar.

No trabalho, Ela organizava os livros que haviam sido consultados pelo público no dia anterior, quando notou a presença de um rapaz sério. Ela sentiu-se estranha por notar suas feições como diferentes e agradáveis.

Ele entrara com frieza. Não simpatizava nem um pouco com o assunto que tinha de tratar. Nem sequer pensou nas pessoas que ali trabalhavam como não culpadas pelo seu desconforto.
Entrou no Arquivo Histórico de sua cidade unicamente para pegar a certidão de sepultamento de sua mãe. Até se interessava pelo local, afinal poderia encontrar fontes explicitas para suas teorias, mas naquele momento, só queria que o tempo passasse rápido, para sair logo dali e deixar de lado o assunto da morte.
Ele sempre se lembrava de um episódio da escolinha. O coleguinha encrenqueiro lhe disse, o provocando, que sua mãe iria morrer. Ele pensou não, ela não morre.
Em casa, correu para confirmar sua certeza, mas sua mãe negou, disse, sim, morreria. Ele sentiu seu primeiro momento de amargura, aquilo que não se sabe lidar. E desde então tem sido assim.

A Prefeitura, após um determinado período, faz o recadastramento das sepulturas. Quem tiver direito a certidão, validada por pagamentos, não as perde.
Ele não tinha direito a certidão. Nunca teve condições de pagá-la. Desde que sua mãe morrera, ficara solitário, tendo sempre de batalhar sozinho pelos seus estudos, suas teorias. Dificilmente conseguia trabalho. Ser escritor, teórico, poderia ser amorfo, mas de algum modo era um meio fechado.

Ele ficou extremamente furioso ao saber que não tinha direito. Pra começar já não sábia onde sua mãe estava, não tinha muitas crenças para se apoiar. Agora queriam lhe retirar os últimos restos dela.
Ele brigava, desolado.
Ela assistia tudo, e cada vez mais tinha certeza de que conhecia aquele rapaz.

As formas dela se desmanchavam, escorrendo pelo chão, tamanha a expectativa.
Ela queria ajudar.
Mas tinha medo.
Como dizer a Ele que as pessoas apenas entendiam Que os velhos mortos deveriam ceder lugar aos novos mortos?
Pareceria idiota, é claro.
Ela pensava o quão complicado era esse tema da morte, sobretudo para um primeiro diálogo. Pensou em fazê-lo de uma dimensão diferente. Poderia comentar o quão intrigante era a maneira como ela fora descrita por autores como Saramago e Neil Gaiman, como uma mulher. Ela poderia entender melhor por também o ser?
Mas, complicado mesmo seria dialogar sobre o aspecto da vida se encarregar de constantemente mudar os personagens, mesmo quando o motivo não era a morte.

Os velhos mortos que cediam lugar aos novos mortos não corresponderia apenas ao feitio literal, refletiria ele, caso lhe fosse perguntado. Almejando embalar em conceitos, se lembraria do como as pessoas morrem de diversas maneiras. Observando a si próprio, e a garota, poderia se confrontar com o inimaginável, um período com um corpo por deveras bonito, quando a imaginação ainda não está saturada pela experiência, envelhecida pela rotina, de modo em que se acredita saber todas as coisas, todos os passos, e contando apenas com o real, revelando, o talhe Pânico.
Ele pensaria ser como um ciclo, em breve moldando os novos mortos sem que estes deixassem de existir. Pensaria também, poder fugir disso, mas perceberia o discurso da maioria dos respectivos mortos, lhe afirmando já terem pensado assim, uma espécie de fase. A comprovação da teoria, Ele ainda não poderia ter.

O desenho do encontro de ambos foi torto, ridículo, como muitas vezes estes assuntos coloridos costumam ser.
Ela, para se esquivar de tê-lo em seus pensamentos, fugiu para a sessão de livros raros, e restaurar algum.
Ele, desapontado por não ter obtido a certidão, foi até a sala que imaginava não ter ninguém, unicamente para socar uma parede e poder seguir em frente ou pelos lados, no momento, tanto fazia. E assim o fez, despertando de seu transe apenas quando Ela derrubou um livro no chão, de susto.
Não se sabe como, mas Ele percebeu os olhos dela faiscando.
Ela, sem controle, pronunciou ser complicado o assunto dos novos e velhos mortos. Sim, neste jeito.
Ele, já curioso pelos olhos, mesmo sem entender, pediu ajuda a Ela. Queria uma certidão, mas conseguiu apenas uma caminhada, revelada interessante.

Os passos mostravam suas formas. Em suma, diferentes. Ela achava ser cada um diferente do outro, não apenas em estória, como em personalidade. Cada um era um planeta. Ele pensava que para todos havia uma teoria, sendo quase um extremo de tão iguais, diferentes apenas em minúsculas partículas.
Mas ambos valorizavam as diferenças.
Quiçá Ela estivesse com a razão, cada um inventa seu próprio mundo, o reinando com especificas regras. Ou quiçá Ele estivesse mais próximo, tudo sendo mesmo tão igual, com as pessoas apenas seguindo as repetições.

Engraçado como a morte abriu o caminho. A tristeza parecia ir embora, tirando de algum véu, um quadro de amor.
Ele o via de maneira realista. Gostava de segurança, de moldá-lo semelhante a suas teorias, de maneira que pudesse argumentar, administrar. Ele abominava o sofrimento.
Ela, inconscientemente, achava o último essencial no amor. Derretendo seus sentimentos, poderia senti-los. Talvez tivesse medo de perdê-los em seu interior sem fundo. Ela era sonhadora, e trocaria qualquer segurança pela magia.

O caminhar seguia e eles juntavam seus contornos. Mesmo parecendo não poder surgir um desenho, eles estavam conseguindo.
É engraçado como se consegue ver semelhanças quando assim se pretende. Ou aderir como perfume o cheiro dos possíveis complementos alheios.
Ai o Amor. Este é outro tema em que quando decorre uma morte, acaba se desejando que o velho morto ceda lugar para um novo, mesmo não querendo que este também morra, acontecendo vezes sim, vezes não.

Ele e Ela caminharam até o cemitério. Ela lhe deu uma rosa. Ele despediu-se de sua mãe. A chuva tratou de embelezar a cena.
Eles deixaram por ali, a morte, sendo ela uma mulher ou não, velha ou não.
Ela e Ele juntaram suas mãos. E foram em busca de novas formas.








quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O Aventureiro e o Historiador

Na imagem, o aventureiro adentrou ao nobre salão, pelo corredor havia tido admiração aos cavaleiros que em suas brilhantes armaduras de ferro, cuidavam dos cavalos por almejarem dar a eles também o brilho, além da aparência de força, e assim intimidar os guerreiros inimigos. O aventureiro se viu nestas missões, mas não, não poderia. Sua paixão era o mar, e por este se encontrava ali. Já no salão nobre, se esforçava para visualizar o rei em sua caminhada de entrada. É difícil imaginar um rei, é o ápice da hierarquia, das regalias, aumentando assim, a ansiedade do aventureiro.

Na imagem, o cavaleiro teria apenas um breve relance da figura do rei a sua proximidade, uma figura alta e robusta, no requisite da graça, decepcionante, afinal, toda nobreza de um rei já se constitui em seu sangue, não precisando cultivar a sua aparência.
O aventureiro teria de se recompor logo o monarca se acomodara em sua poltrona, deixando à mostra apenas sua túnica vermelha.

O monarca espanhol disponibilizara um tempo curto ao aventureiro, para poucas palavras, muito ensaiadas por este, quiçá durante toda a sua existência. Por vezes, se denota a impressão das pessoas darem mais atenção a uma pose criada, a condução de um papel, e não ao real.
O aventureiro genovês não poderia falhar, se preparou exatamente para convencer o monarca espanhol sobre os triunfos que traria a ele, a possibilidade de vantagens sobre o monarca rival, o português.


Ainda na imagem, o genovês teria sido impecável. Através de sua visão do mundo como uma esfera, sua orientação seria circunavegar o oceano Atlântico para poder passar ao Indico, abrindo assim, um novo caminho as Índias. Na imagem, o rei teria se mostrado confuso, pois detinha inúmeras questões políticas em sua mente. A rainha teria adentrado a sala no meio do monólogo do aventureiro, se encantando pela pose confiante deste, e destinado o papel de convencer seu esposo a aceitar o pedido daquele pobre rapaz. Pobre porém valioso, afinal detinha razão pelo plano determinado e coragem, um ato desejado pela rainha, por muitos, pois assim ela poderia se atirar naqueles braços que tanto a encantaram. Naquela imagem, ela teria contribuído dentro de suas possibilidades de opinião na história, que não era nada favorável as mulheres.


As imagens seguintes mostrariam um triunfo conquistado. Não propriamente o planejado, mas o aventureiro teria enviado uma carta ao rei, anunciando a chegada a terra.
Terra misteriosa, logo constatada como nova, anunciada como um novo mundo, como a descoberta da América.

É evidente a força do imaginário, mas não se pode não colocá-lo na balança com o fato empírico. É claro que o peso maior na balança não é generalizado. Sim, alguns decidem pelo imaginário, mas talvez o resultante decorra pela visão dos homens serem inerentes à sua semelhança, aos alcances de seu meio.

Mas, todas estas visualizações foram perdidas a partir das análises de inúmeros livros e documentos do Historiador. Rapidamente, o belo cenário foi destruído.
O Historiador analisava a ideia da “Invenção da América”, e não seu descobrimento, como é aceito e representado como Dogma historiográfico. O Historiador objetiva a visão de uma história ontológica, isto é um processo produtor de entidades históricas e não a existência inerente destas.
O Historiador aborda a possibilidade da viagem de 1492 ser a priori concebida como uma “empresa de descobrimento”. Em suas pesquisas, leu autores que alegavam a existência de uma lenda do piloto anônimo, um sujeito consciênte da existência da América, e que teria entregado a Colombo o mapa com as certas coordenadas para que este pudesse confirmar. Mas como sabemos na história, muitos autores vão a defesa de Colombo, por vezes negando a existência deste piloto, em outras colocando o famoso conquistador no lugar deste, e ainda em outras, autores que conferem o descobrimento como um propósito divino, ou seja, Colombo seria apenas um mero agente.
O Historiador gosta do conceito de seu companheiro de profissão, O´Gorman que ignora a possibilidade de um ato não ser provido de intenção. O’Gorman ainda reduz ao absurdo todas as análises vistas, por chegarem ao limite de suas possibilidades lógicas, sendo que a América tem um processo peculiar, e portanto, levando diretamente toda a história latina e anglo saxônica a uma nova significação, a de ter sido inventada.
Para o aventureiro, a América poderia ser apenas uma possibilidade qualquer de novo mundo, constatado nas lendas medievais. Os motivos que levariam os reis católicos a apóia-lo se referem a rivalidade com Portugal, de aparecer de maneira explicita uma declaração do domínio espanhol sob o oceano. O Historiador observa que Colombo não conseguiu perceber o novo mundo, quando pisou nele, pois postulou sua hipótese numa espécie de crença, fé que eram as Índias. Já os reis espanhóis apenas buscavam um novo espaço para explorar, e encarregaram então, a outro aventureiro a missão de entendimento daquele novo espaço. Américo Vespúcio logo denominaria a terra como a quarta parte do planeta, um novo “continente” que receberia seu nome. A Invenção da América representa um complexo processo ideológico. Os habitantes do novo mundo, foram definidos como humanos, ao contrário do que diziam as lendas medievais, afinal, se colocaria em risco a visão cristã da unicidade fundamental do gênero humano, entretanto, os novos habitantes teriam de ser denominados como inferiores espiritualmente, para assim justificar a missão européia de civilizá-los. A Invenção da América representa então, processos políticos, sócioeconômico da atuação da Europa neste espaço.


O Historiador, humano oscilante, ainda pensava nas imagens que costruira. Detém medo que cometa erros desse tipo, em outros conceitos, mesmo que inconscientemente. Ele tem dúvidas sobre ser totalmente positivo não alimentar o imaginário, os ideias, as utopias. Pensa se comete erros assim quando ainda acredita nos seres humanos, em mudanças históricas.
Mas, como se pudesse afastar esses pensamentos através de um tapa, limpa o ar em sua volta, não queria pensar naquilo no momento, afinal, estava atrasado para um compromisso com sua militância, afinal, aquelas crianças a qual trabalhava o esperavam, com sua cesta de alimentos, com suas palavras reconfortantes.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O abajur

Era um abajur comprido, em formato moldado a semelhança de uma garrafa dessas de bebidas caras, com o corpo mais fino e um largo achatamento na base. Seu topo, sua identidade, era de um amarelo vivido conseguindo destaque mesmo cobrindo uma lâmpada. Um amarelo vivido em contraste com um quarto de paredes rosa, objetos diversos, em sua maioria sem sentidos, e uma dona formosa, no entanto comum.
O abajur estava ali ha tempos. Fora dado a Moça por uma tia, talvez com uma boa intenção, não se sabe ao certo. Mas a Moça apenas o recebera na qualidade de objeto. Nem sequer se importou com suas formas, gostava mesmo é de quantidade, colecionava adornos, talvez colecionasse momentos, embora refletisse quase nada sobre eles.
Na primeira vez que o abajur falou, o adorno ao lado, o relógio, anunciava duas badaladas da madrugada. Sua tentativa era de estabelecer algum tipo de comunicação, uma espécie de “alo” seguida de um apelo de nota a sua existência. A Moça estava em um sono incerto, aqueles transes em que não se sabe ao certo se está dormindo ou acordado. Ela se movia de um lado a outro, não conseguia ajeitar-se em conforto, descobria e cobria determinadas partes do corpo. Pois quando o frio e a irritação normal da insônia deram a vitória pra consciência, o tagarelar do abajur já era forte e fora por ela ouvido. Mas então, foi a vez da Moça trapacear, iludindo a si sobre o absurdo do acontecido. Quando-se ignora tudo, fica fácil dormir.
Intrigado, o abajur aquietou-se. Mas acabou tomando por decisão, não esperar tanto tempo para estabelecer o próximo passo, já que vivera da mesma forma por três longos anos a espera de conseguir tomar uma atitude. Logo no dia seguinte se pois a prosear. A Moça até se assustou, mas acreditou ser um sonho, levantou tomou um chá e voltou a dormir. O incidente acabou sendo um bom motivo para o uso de calmantes e com eles, iniciar uma nova coleção.
E por meses, se manteve a cena. O abajur a tagarelar e a Moça com sonhos interpretar. O abajur ria das explicações da Moça às amigas que aquele quarto visitava. No começo a história era simples, ela dizia sonhar com um abajur falante. Com o tempo as pessoas perdiam o interesse na história, e mesmo ela, afinal repetir sempre a mesma coisa se torna fatigante. Ai vem as mudanças simples, se fossem longas requereriam pensamentos, planejamento e não se pode esquecer da presença do medo.
A Moça passou a enfeitar a história. Os sonhos com o abajur soavam emocionante, de homens a mármore, na dualidade de fadas à bruxas. Mas o que mais fazia o abajur rir, era a afirmação dela alegando ter procurado especialistas e saber como resultado de se sonhar com abajures um significado de riqueza.

E o abajur falava e falava. Até cantava. E com o tempo, fora facilmente despercebido, por se visualizar inúmeras vezes o mesmo ambiente, tornou algo normal. Agora mesmo que falasse durante o dia, nada acontecia. O abajur foi se especializando na arte das palavras, apreendidas com a observação. Visualizou ali infinitas coisas, mesmo que em sua maioria se exibissem numa ideia de constante repetição, captava o que nem a Moça tecia tempo ou mesmo vontade de ver, as entrelinhas.
É, tudo o que cabia ao abajur, era brincar com as palavras, uma espécie de caça ao tesouro da compreensão. E, como escreveu Tolstoi, ou como assinaria em concordância o abajur, se soubesse exercer a atividade da escrita, o posto da literatura, das palavras como um subproduto da infelicidade, sugerindo que os infelizes inventam diferentes estilos de sofrer, cada um a sua maneira, enquanto os não infelizes se limitam a viver num estado de plenitude, a salvo de contradições.
No quarto, a atividade mais constante, além do sono, da televisão, da presença das amigas e dos familiares, era o sexo. O abajur gosta de contar da vez em que ali dormira um rapaz amigo da Moça. Os personagens iam assistir um filme, e o faziam até o rapaz apertar o abraço na Moça, mordendo-lhe suas orelhas. O abajur descreveria aquilo como um grande arrepio, e contara a tentativa de hesitação da Moça. Mas o amigo insistira, beijando suavemente o pescoço dela, dando a uma mão a função de força, provocação as curvas da Moça, e a outra o papel da leveza.
E as mãos seguiam em suas funções até que a moça com gosto se virou deixando seu corpo de frente ao do rapaz, em um ato simultâneo a um delicioso beijo, descreveria o abajur. O abajur ainda falaria sobre o constrangimento dos amigos no dia seguinte. Notaria pois ser algo difícil de ocorrer. Via cenas incríveis por ali, brincadeiras e tatos enlouquecedores, mas se irritava com a constante mudança de personagens. Odiava quando percebia algum fingimento, ou quando não havia troca de olhares.
Se perguntava, se a Moça se lembraria de um amante antigo, um que era mais constante. Um que a fazia rir a toa, que trazia bombons. Um que se dividia com ela. Desses importantes, que se quer tanto e na primeira vez acaba tendo nervosismo, mas que no final é surpreendente. Surpreendente até se tornar paralizante, devido a dor que o rompimento causa. O abajur gostava de lembrar dele. Já a Moça, talvez não.

Não se sabe se o abajur gostava da Moça, ao passo que se sabe o contrário, que a Moça não ligava para o abajur. O abajur não deveria saber muito sobre ele mesmo. Sabia sobre suas reações, seus pensamentos, mas eram todos as custas da vivência da Moça, ou do ódio que tecia aos objetos que cada vez mais ela embutia ali. Ódio por eles não falarem, ódio pelas dificuldades de não saber lidar com as diferenças, e sobretudo ódio pelas expectativas que nunca deixavam de surgir quando algo novo aparecia por ali, e que sempre terminavam da mesma forma.
Não é que o abajur soubesse muito sobre sentimentos, sobre certezas. Mas se tem uma coisa a qual o abajur achava mais triste do que a rotina, era a solidão.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Sobre o Consumismo

No ponto de ônibus, se aproximou da garota, um rapaz. O rapaz, envolto em roupas desgastadas, se dirigiu a ela sorrindo e com um olhar que ela odiava receber, um olhar inseguro, rebaixado hierarquicamente. Lhe perguntou se sobraria alguns trocados, se poderia doá-los, e assim, ele poderia pegar o ônibus de volta a sua casa. A garota o fez.
Sentada no banco mais alto do ônibus, a garota teve outra surpresa. O mesmo rapaz se acomodou a seu lado, agora com um sorriso mais seguro, revelando a ausência de alguns dentes. Timidamente introduziu uma conversa, até que ganhara mais confiança e passara a lhe contar sobre seus irmãos, seu trabalho de entregador de panfletos, e sobre sua namorada. Foram longas falas sobre ela, mostrou à garota o tênis que usava, um nike, modelo último. Contou-lhe sobre a dívida que se metere por causa dele, pois queria impressionar a namorada.
A garota precisou descer, para seguir a seu compromisso. Já na escola, ficou sabendo que acompanharia uma reunião com um aluno e sua mãe. A mãe fora reclamar sobre não estar mais recebendo o auxilio bolsa família, e a escola lhe respondia que nada poderia ser feito, visto que um dos requisitos para o recebimento deste, é a presença do aluno na escola, o que não vinha acontecendo. Pediram ao garoto ali presente, sua explicação. Ele disse a todos que parou de frequentar as aulas para passar mais tempo trabalhando, e assim, conseguir comprar um vídeo game, aquele que passava nos comercias de TV, o que todos os seus amigos tinham...
No fim da tarde, por gostar de caminhar, a garota acabou voltando assim para casa. No caminho, visualizou uma dessas casas bem humildes, com um muro caído, poucos cômodos e muitas pessoas. Percebeu pela porta aberta, uma televisão de plasma.
Pois é, a fez lembrar sobre a lógica do mercado consumidor, mesmo sem adentrar a fundo sobre as origens e explicações do sistema, pensou na ideia do consumismo atingindo as camadas mais baixas, em que você percebe as restritas condições de vida, decoradas pelos importados produtos esbanjados nas camadas altas. O mercado consumista se inflama com a ideia de tempo, ou a falta dele, devido as longas jornadas de trabalho. As pessoas não mais se encontram nos seus espaços de trabalho, a tecnologia que poderia diminuir essas horas, faz o contrário. A tecnologia ainda contribui para o menor encontro das pessoas nos momentos de lazer, as isolando, pois a diversão é oriunda propriamente dos reconfortantes meios tecnológicos. Meios este coloridos, atraentes colocando a todos numa mesma ideia consumista; meios inibidores do pensamento. O pensamento nunca fora mesmo visto como uma coisa boa, e mesmo com suas limitações e atrelamentos às lógicas moldadas no social, representa se assumir como algo além de um verbo, inimigo do conformismo absoluto. Pensou sobre a lógica do mercado consumidor sempre facilitando, deixando todos à vontade, enquanto as ideias contrárias se perdem em fragmentações, em incertezas e acabam aparentando agressão.
A garota riu ironicamente. É, se percebe que o mercado privilegia tudo, acaba com o tabu do sexo, transforma em mercadoria o material dos opositores. E, quando você pensa que ele só não age sobre a morte, o Michael Jackson morre, e os resultados vem te mostrar que está errado.

domingo, 5 de julho de 2009

Ideia...

Se eu tivesse alguma ideia sobre o que escrever, tentaria descrever os dias, as metáforas, os intimos e aflorados desejos e as imediatas necessidades.
Se eu tivesse alguma ideia, tentaria pô-la em prática, buscaria compreender se ela é subjetiva ou a dois ou ainda se é geral, se todos compreendem a falta de coerência moldada no decorrer da história, e mesmo com todos os infindáveis mistérios entre o céu e a terra, muito além do conhecimento da nossa filosofia, a percepção do espaço material como plausível de transformação, pois não é mágica, e sim trabalho.
Se tivesse alguma ideia, tentaria explicar que quanto mais tempo se passa do lado de dentro, mais se esquece como é lá fora.
Caso houvesse alguma ideia do significado dos sonhos, eu os valorizaria mais, tomaria mais cuidado com as limitações impostas a eles pelas circunstâncias, ou apenas os interpretaria de maneira distinta, para me revigorar em possibilidades.
Se tivesse alguma ideia sobre ser atriz, poderia criar inúmeros personagens em um mar de vivências de verdades e mentiras, sempre com tamanha intensidade.
Sem ideias sobre algo que me permitisse não sentir saudade, não consigo pará-las. Me perco em saudades infinitas, entre nostalgia e aquilo que ainda não vi, me perco em saudades exatas capazes de transformar o gosto em algo real. Se tivesse ideia da validade dos pensamentos, o controle das lembranças, esqueceria que da própria ideia caiu o acento.
Se eu tivesse alguma ideia sobre como falar dos sentimentos, de uma maneira que fossem ouvidos, diminuiria a função dos olhares e as buscas por reciprocidade. Se tivesse ideia sobre o que falar, talvez começasse pelo cotidiano, talvez dissesse mais bons dias, talvez chamasse você para um passeio de mãos dadas, talvez pararíamos almejando um café expresso, e seguiríamos forte.
Se eu tivesse alguma ideia de onde tudo vai terminar, acabaria de uma forma simples e agradável.

sábado, 9 de maio de 2009

Agradável Noite.

Era final de festa. Naquele momento, por volta das sete da manhã, o ambiente representava mais uma pequena reunião de bons amigos.
Os amigos acabaram por decidir fechar as cortinas; uma forma de truque para disfarçar a claridade surgida, persistente em aumentar, não assustando e espantando assim, os corajosos que mesmo em meio ao sono não queriam abandonar a prosa envolvente para caminhar e constituir o dia sugerido.
No momento, a agitação se dava por dividirem suas visões sobre o rock; alguns achavam maior a importância do Elvis Presley, outros dos Beatles...E as opiniões se convergiam e se divergiam, e puxavam outras questões, e perguntava-se sobre o Blues, sobre a contribuição de Frank Zappa...
As falas se multiplicavam e por vezes ocorriam simultaneamente até que todos perceberam ser uma boa hora para trocar a música no rádio. E o que viria? Tantas já haviam sido as músicas roladas pela noite, como decidir a quem mais agradar naquela hora?
Alguns gritavam por Blues. Outros pediriam Jazz. E ainda havia quem insistisse no Punk.
Uma garota presente, observava e via graça nas disputas. Parece sempre haver dificuldade em situações envolvendo mais de um lado. Seria mais simples se na vida houvesse um juiz? Ou algo como a verdade sendo única?...Não, acreditara que não.
A garota decidira minimizar a polêmica. Voltou-se para os amigos e perguntou se estes sabiam sobre um antigo desenho novamente sendo transmitido na televisão:
- O que? Está Passando Duck Tales? Quando? Onde?...Fora a resposta.
Os amigos se empolgaram e se percebia a alegria ao cantarem “Duck Tales,(uhu) são os caçadores de aventuras (uhu)...Todos eles são grandes figuras (uhu)”...
E naquele momento, todos os presentes lembraram de sua infância. Era quase visível a nostalgia. Nostalgia essa, por vezes portadora de reconforto, de saudade e que por vezes até fere.
E, os historiadores, em maioria ali presentes, acabaram por compartilhar a sua própria história.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A Criatura

No corredor do hospital, o que comumente se entende por amorfo e relativo, passa a adquirir formas, tamanha a exuberância dos sentimentos ali embutidos. Os sentimentos dos indivíduos ali hospedados, se acumulando ao longo de inúmeras gerações, move lentamente os braços que agora possui. Se movendo por um árduo rastejar, até que as dores sejam exorbitantes, e se decorra por completa a transformação.
A Criatura, se levanta, exibindo suas novas conquistas, de iniciar um caminhar acompanhado de uma expectativa, cuja falta do componente na formula impede a denominação de felicidade. Evidentemente, não é visível aos olhares humanos. Mas, como muitas coisas que não são tangívéis, afeta os homens.
Naquele ambiente, haviam divagações; divagações sobre coisas diversas, sem deixar de lado aquilo que o homem não pode compreender ao certo. É sabido, que se os homens apenas falassem sobre o que compreendem, logo o mundo estaria em silencio.

Em instantes, o corredor do hospital se ilumina, não propriamente como uma chuva de cores, mas uma claridade denunciando um forte vigor na limpeza do ar. Se torna espantoso a velocidade de abertura de expressões nos olhares dos pacientes. Muitos estavam ali à tempos, amargurados pelo destino incerto, enfraquecidos pelas dores físicas e ociosos com os sentimentos que nem sequer sabem valer a pena transparecer ou até se devem mesmo sentir.
Parece não ser simples estar a espera do correio e, ao invés de uma boa correspondência da lembrança de ti por alguém, com sorte acompanhada de uma caixa de chocolates, receber uma carta da morte.

Os passos da Criatura, cada vez se tornando mais firmes, sombreiam mais e mais a limpeza e perfume do ambiente. Abrem-se também, personalizando os olhares, diversos sorrisos. É reconfortante um momento de tranquilidade após longas preocupações e pensamentos. A primeira reação de muitos, é a dança. Para os menos habilidosos, estranhos saltos e movimentos desritmados do corpo; já outros preferem não se arriscar, escolhendo os abraços. Os sentidos conferem largo poder sob os homens, sendo ou não totalmente enraizados nos instintos biológicos- podendo levar a loucuras e em péssimas hipóteses ao adiantamento da carta da morte- são no geral, a diversão que sempre se procura. Contudo, não são todos os festejadores agindo mesmo sem saber ou enxergar o porque, alguns, seguem ao que sempre foram, mesmo antes do inicio da fase do hospital; agem como um blasé, cuja denuncia revela o tédio ou a forma única em que conseguem ver o mundo, sempre o mais do mesmo, outros revelam o jeito de sempre manter as dúvidas na vitória sob os sentidos, prejudicando-os, é claro, mas favorecendo em diversas vezes, a conquista nas lutas contra as decepções. Mas para estas pessoas, a novidade da falta da dor física já é positiva, mesmo não havendo mudança nas aparências.
A maior claridade, oriunda da porta, chama a atenção da Criatura, instantaneamente guiando seus passos nessa direção. Formada de ingredientes reflexivos, oscilantes mas sobretudo fortes, ela conseguia perceber naquele ambiente do hospital, sua segurança. Mas os mistérios do desconhecido, a ansiedade por surpresas impulsionou sua decisão de continuar caminhando.
A variedade de formas, tamanhos, cores, funções no novo campo de visão, impressionava a Criatura. Pois é, mesmo os mais fortes pensamentos e ideologias perdem-se por algumas belezas.
O resultado poderia ser apenas uma inversão de conceitos. A medida em que a criatura absorvia os sentimentos positivos causados pelos deslumbres, radiava para fora de si, sua matéria pesada. Aquilo afetou cruelmente as pessoas. Evidentemente, muitas delas não sabiam o que era pensar, questionar, duvidar; ao contrário do corredor do Hospital, elas não precisavam se preocupar com a carta da morte, e, as vezes, os padrões pré estabelecidos são tantos que não havia como se desligar das ilusões a estas sempre impostas.

Nunca se vira o ar tão cinza, tão fechado. É claro que os pensamentos por si só não são algo ruim, mas na ocasião em questão, por representarem o desconhecido, pegou os cidadãos de surpresa. Foi o Terror. Arrancaram lhes à força a felicidade, a segurança; muitos ficaram fatigados, a espera da cartilha montada pelas propagandas coloridas. Mas não haviam mais cores.
As grandes corporações perceberam que precisavam fazer algo. Tudo se encontrava morto, não havia como denominá-los de seres humanos, portanto estavam correndo o risco de chegarem elas próprias a um fim. Acabou-se recorrendo ao governo, e por debaixo dos paninhos agora sem cores, fora prometido as mais novas artes, inimagináveis, pagadas é claro, quando ocorresse o retorno ao que comumente se conhecia.
O governo tentou conscientizá-los. Contudo, ninguém nunca ouvia o governo, e evidentemente, consciência nenhuma surge assim de fora. Então o governo decretou uma lei proibindo a tristeza. Mas, a falta de domínio nas reflexões só podia levar a ela, ao caos. Nas ruas, as pessoas passaram a chutar os carros, destruir o comércio, incendiar os bancos. Pois é, tristeza sem controle pode acabar levando a raiva.
Parece que beneficiados mesmo, foram apenas os planos funerários, tiveram um exímio crescimento, nunca antes registrado, ao contrário dos bancos, evidentemente afundando cada vez mais na lama da crise. O resultado representou o auxilio recorrido junto a Igreja. Esta inverteu seus conceitos. Outrora, já havia feito isso, isto é, por deveras vezes. É sabido que tentou explicar o que era o bem e o mau. Começou com Deus, que criou o bem, mas era um ser perfeito e não pode ter sido o criador do mau. Então Deus criou o bem e um anjo decaiu e por si criou o mau. Mas, não, não, sendo o anjo o criador do mau, na lógica, por ter sido criado por Deus, remete a este a culpa da criação do mau. Então, se volta novamente. Define-se que o mau não existe. Existe o bem e a ausência dele; sendo pois, a base do pensamento ocidental cristão. O tal do Deus existe, não se confirma em provas, mas se não existe a partir do que subtende-se por ele, existe a partir da crença que as pessoas conferem a sua existência. Isso gerava medo. Alguns seres instigados, acreditavam por segurança, mas ninguém poderia saber
ao certo. Fato é que, não havia mais o medo. Assim como não havia o juízo de valor entre o certo e o errado, o bem e o mau. Portanto, a maior vitória da Igreja refere-se a alguns fiéis em sua porta; mas estes já não podiam oferecer nada.
A Criatura continuou sua caminhada por longos anos. Parece sempre haver tempo pra se encantar. Mas, sua essência era reflexiva, e em algum momento, passaria a utilizá-la. A Criatura percebeu que tudo aquilo era meio externo a si e propriamente não duradouro. A beleza nunca fora forte pra vencer o tempo. E, a Criatura sentiu o vazio. Fora atingida pela solidão.
Mantinha suas caminhadas, no peito, sempre o aperto cujas formas nunca permitem saber ao certo o que é.
Em mais um belo dia, agora chuvoso, porém com magnânimos orvalhos, a Criatura encontrou uma casinha, e dentro dela, um músico. Ele passava todos os seus dias na companhia dos livros e de seu gato, além de seus instrumentos, é claro. Parecia em paz. Sabia sentir afeição, dar carinho, sabia usar sua criatividade, sabia ser livre, pensar e fazer por si. Não fora afetado pelo ar cinza, permanecia com o que lhe era o bastante e assim, a Criatura pode vê-lo.

Naquele instante, e a partir de então, a Criatura desejou ser uma mulher. Queria seduzi-lo, sentir o que imaginava ser perigosamente humano, porém, ser de todo, algo como vida. A Criatura sabia que não poderia abandonar o que era, por isso sentia dor. O mundo voltara ao normal. A felicidade da ignorância, a ignorância da felicidade. Mas não se contava com uma coisa. Intermitência...
E, de repente, a leveza constante do músico fora interrompida. Havia deparado com uma bela mulher, do tipo com um corpo magro mas de curvas marcantes e um par de olhos esverdeados que brilharam concomitante ao sorriso que ela lhe transmitiu. Segue se sentimentos impossíveis de serem explicados.
Um par de mão dadas, e um novo caminhar, foi o ocorrido. A partir daquele dia, não se sabe o que as pessoas a fora sentiam. Eram donas de sua própria vida.