Entre,sinta-se à vontade. Não repare as estranhezas,as belezas...

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Formas : Um conto de amor risível

Ela caminhava para o trabalho, e como de costume, observava todos os contornos dos objetos que compunham a sua paisagem cotidiana.
Ela contava quatro prédios quadrados antes de criar uma meia lua ao passar de uma rua a outra, onde brincava com seu imaginário corredor retangular, formado pela distancia entre as árvores. Sabia estar completa a sua brincadeira se chegasse na linha de travessa da ponte antes dos carros, pois assim não comprometeria seu horário. Mas isso raramente acontecia, talvez por ela tanto se distrair com a paisagem, muitas vezes buscando uma parte nova, como se tudo escondesse algo dela.
Ela se sentiria sem contorno se fossem destruídos todos aqueles pontos com os quais criara uma identidade. Por mais que sempre olhasse atenta em busca de diferenças, principalmente pessoas de diferentes formas, se sentiria perdida, sem experiência, e não saberia poder contar com uma memória histórica para além de seguir as maneiras estabelecidas, entender contextos e origens, e até almejar se surpreender e se renovar.
Ela e ela mesma viviam em constante desentendimento. Se incomodava com sua forma interior, sem fundo. O caráter introspectivo, enquanto o exterior era solidamente tímido.
Para Ela, sentir vergonha era como um descompasso. Enquanto o compasso dos outros desenhava um circulo, o dela formava um prisma.

O dia dele não havia começado como um dos melhores. Acordara todo quadrado, resultado de uma noite ruim de sono. Ele gostava de colorir tudo o que fazia com intensidade. Não era diferente com dormir.
Ele, mais do que observar, gostava de decifrar as coisas. Tinha inúmeras teorias, as quais etiquetava os objetos e pessoas a sua volta. Ele sempre utilizava suas teorias para chocar as pessoas. Se sentia bem deste modo, talvez porque ele mesmo fosse totalmente cético.
Ele costumava colocar todos os seus sentimentos em diferentes caixas. Mas suas caixas nunca cabiam em nenhuma estante.
Decidido a colocar seu mal humor em uma embalagem triangular, quase desistindo no momento em que derrubou leite na sua calça e teve de trocá-la, seguiu para seu dia, no mínimo diferente, por ter uma folga num período do trabalho, para resolver um empecilho familiar.

No trabalho, Ela organizava os livros que haviam sido consultados pelo público no dia anterior, quando notou a presença de um rapaz sério. Ela sentiu-se estranha por notar suas feições como diferentes e agradáveis.

Ele entrara com frieza. Não simpatizava nem um pouco com o assunto que tinha de tratar. Nem sequer pensou nas pessoas que ali trabalhavam como não culpadas pelo seu desconforto.
Entrou no Arquivo Histórico de sua cidade unicamente para pegar a certidão de sepultamento de sua mãe. Até se interessava pelo local, afinal poderia encontrar fontes explicitas para suas teorias, mas naquele momento, só queria que o tempo passasse rápido, para sair logo dali e deixar de lado o assunto da morte.
Ele sempre se lembrava de um episódio da escolinha. O coleguinha encrenqueiro lhe disse, o provocando, que sua mãe iria morrer. Ele pensou não, ela não morre.
Em casa, correu para confirmar sua certeza, mas sua mãe negou, disse, sim, morreria. Ele sentiu seu primeiro momento de amargura, aquilo que não se sabe lidar. E desde então tem sido assim.

A Prefeitura, após um determinado período, faz o recadastramento das sepulturas. Quem tiver direito a certidão, validada por pagamentos, não as perde.
Ele não tinha direito a certidão. Nunca teve condições de pagá-la. Desde que sua mãe morrera, ficara solitário, tendo sempre de batalhar sozinho pelos seus estudos, suas teorias. Dificilmente conseguia trabalho. Ser escritor, teórico, poderia ser amorfo, mas de algum modo era um meio fechado.

Ele ficou extremamente furioso ao saber que não tinha direito. Pra começar já não sábia onde sua mãe estava, não tinha muitas crenças para se apoiar. Agora queriam lhe retirar os últimos restos dela.
Ele brigava, desolado.
Ela assistia tudo, e cada vez mais tinha certeza de que conhecia aquele rapaz.

As formas dela se desmanchavam, escorrendo pelo chão, tamanha a expectativa.
Ela queria ajudar.
Mas tinha medo.
Como dizer a Ele que as pessoas apenas entendiam Que os velhos mortos deveriam ceder lugar aos novos mortos?
Pareceria idiota, é claro.
Ela pensava o quão complicado era esse tema da morte, sobretudo para um primeiro diálogo. Pensou em fazê-lo de uma dimensão diferente. Poderia comentar o quão intrigante era a maneira como ela fora descrita por autores como Saramago e Neil Gaiman, como uma mulher. Ela poderia entender melhor por também o ser?
Mas, complicado mesmo seria dialogar sobre o aspecto da vida se encarregar de constantemente mudar os personagens, mesmo quando o motivo não era a morte.

Os velhos mortos que cediam lugar aos novos mortos não corresponderia apenas ao feitio literal, refletiria ele, caso lhe fosse perguntado. Almejando embalar em conceitos, se lembraria do como as pessoas morrem de diversas maneiras. Observando a si próprio, e a garota, poderia se confrontar com o inimaginável, um período com um corpo por deveras bonito, quando a imaginação ainda não está saturada pela experiência, envelhecida pela rotina, de modo em que se acredita saber todas as coisas, todos os passos, e contando apenas com o real, revelando, o talhe Pânico.
Ele pensaria ser como um ciclo, em breve moldando os novos mortos sem que estes deixassem de existir. Pensaria também, poder fugir disso, mas perceberia o discurso da maioria dos respectivos mortos, lhe afirmando já terem pensado assim, uma espécie de fase. A comprovação da teoria, Ele ainda não poderia ter.

O desenho do encontro de ambos foi torto, ridículo, como muitas vezes estes assuntos coloridos costumam ser.
Ela, para se esquivar de tê-lo em seus pensamentos, fugiu para a sessão de livros raros, e restaurar algum.
Ele, desapontado por não ter obtido a certidão, foi até a sala que imaginava não ter ninguém, unicamente para socar uma parede e poder seguir em frente ou pelos lados, no momento, tanto fazia. E assim o fez, despertando de seu transe apenas quando Ela derrubou um livro no chão, de susto.
Não se sabe como, mas Ele percebeu os olhos dela faiscando.
Ela, sem controle, pronunciou ser complicado o assunto dos novos e velhos mortos. Sim, neste jeito.
Ele, já curioso pelos olhos, mesmo sem entender, pediu ajuda a Ela. Queria uma certidão, mas conseguiu apenas uma caminhada, revelada interessante.

Os passos mostravam suas formas. Em suma, diferentes. Ela achava ser cada um diferente do outro, não apenas em estória, como em personalidade. Cada um era um planeta. Ele pensava que para todos havia uma teoria, sendo quase um extremo de tão iguais, diferentes apenas em minúsculas partículas.
Mas ambos valorizavam as diferenças.
Quiçá Ela estivesse com a razão, cada um inventa seu próprio mundo, o reinando com especificas regras. Ou quiçá Ele estivesse mais próximo, tudo sendo mesmo tão igual, com as pessoas apenas seguindo as repetições.

Engraçado como a morte abriu o caminho. A tristeza parecia ir embora, tirando de algum véu, um quadro de amor.
Ele o via de maneira realista. Gostava de segurança, de moldá-lo semelhante a suas teorias, de maneira que pudesse argumentar, administrar. Ele abominava o sofrimento.
Ela, inconscientemente, achava o último essencial no amor. Derretendo seus sentimentos, poderia senti-los. Talvez tivesse medo de perdê-los em seu interior sem fundo. Ela era sonhadora, e trocaria qualquer segurança pela magia.

O caminhar seguia e eles juntavam seus contornos. Mesmo parecendo não poder surgir um desenho, eles estavam conseguindo.
É engraçado como se consegue ver semelhanças quando assim se pretende. Ou aderir como perfume o cheiro dos possíveis complementos alheios.
Ai o Amor. Este é outro tema em que quando decorre uma morte, acaba se desejando que o velho morto ceda lugar para um novo, mesmo não querendo que este também morra, acontecendo vezes sim, vezes não.

Ele e Ela caminharam até o cemitério. Ela lhe deu uma rosa. Ele despediu-se de sua mãe. A chuva tratou de embelezar a cena.
Eles deixaram por ali, a morte, sendo ela uma mulher ou não, velha ou não.
Ela e Ele juntaram suas mãos. E foram em busca de novas formas.