Entre,sinta-se à vontade. Não repare as estranhezas,as belezas...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O abajur

Era um abajur comprido, em formato moldado a semelhança de uma garrafa dessas de bebidas caras, com o corpo mais fino e um largo achatamento na base. Seu topo, sua identidade, era de um amarelo vivido conseguindo destaque mesmo cobrindo uma lâmpada. Um amarelo vivido em contraste com um quarto de paredes rosa, objetos diversos, em sua maioria sem sentidos, e uma dona formosa, no entanto comum.
O abajur estava ali ha tempos. Fora dado a Moça por uma tia, talvez com uma boa intenção, não se sabe ao certo. Mas a Moça apenas o recebera na qualidade de objeto. Nem sequer se importou com suas formas, gostava mesmo é de quantidade, colecionava adornos, talvez colecionasse momentos, embora refletisse quase nada sobre eles.
Na primeira vez que o abajur falou, o adorno ao lado, o relógio, anunciava duas badaladas da madrugada. Sua tentativa era de estabelecer algum tipo de comunicação, uma espécie de “alo” seguida de um apelo de nota a sua existência. A Moça estava em um sono incerto, aqueles transes em que não se sabe ao certo se está dormindo ou acordado. Ela se movia de um lado a outro, não conseguia ajeitar-se em conforto, descobria e cobria determinadas partes do corpo. Pois quando o frio e a irritação normal da insônia deram a vitória pra consciência, o tagarelar do abajur já era forte e fora por ela ouvido. Mas então, foi a vez da Moça trapacear, iludindo a si sobre o absurdo do acontecido. Quando-se ignora tudo, fica fácil dormir.
Intrigado, o abajur aquietou-se. Mas acabou tomando por decisão, não esperar tanto tempo para estabelecer o próximo passo, já que vivera da mesma forma por três longos anos a espera de conseguir tomar uma atitude. Logo no dia seguinte se pois a prosear. A Moça até se assustou, mas acreditou ser um sonho, levantou tomou um chá e voltou a dormir. O incidente acabou sendo um bom motivo para o uso de calmantes e com eles, iniciar uma nova coleção.
E por meses, se manteve a cena. O abajur a tagarelar e a Moça com sonhos interpretar. O abajur ria das explicações da Moça às amigas que aquele quarto visitava. No começo a história era simples, ela dizia sonhar com um abajur falante. Com o tempo as pessoas perdiam o interesse na história, e mesmo ela, afinal repetir sempre a mesma coisa se torna fatigante. Ai vem as mudanças simples, se fossem longas requereriam pensamentos, planejamento e não se pode esquecer da presença do medo.
A Moça passou a enfeitar a história. Os sonhos com o abajur soavam emocionante, de homens a mármore, na dualidade de fadas à bruxas. Mas o que mais fazia o abajur rir, era a afirmação dela alegando ter procurado especialistas e saber como resultado de se sonhar com abajures um significado de riqueza.

E o abajur falava e falava. Até cantava. E com o tempo, fora facilmente despercebido, por se visualizar inúmeras vezes o mesmo ambiente, tornou algo normal. Agora mesmo que falasse durante o dia, nada acontecia. O abajur foi se especializando na arte das palavras, apreendidas com a observação. Visualizou ali infinitas coisas, mesmo que em sua maioria se exibissem numa ideia de constante repetição, captava o que nem a Moça tecia tempo ou mesmo vontade de ver, as entrelinhas.
É, tudo o que cabia ao abajur, era brincar com as palavras, uma espécie de caça ao tesouro da compreensão. E, como escreveu Tolstoi, ou como assinaria em concordância o abajur, se soubesse exercer a atividade da escrita, o posto da literatura, das palavras como um subproduto da infelicidade, sugerindo que os infelizes inventam diferentes estilos de sofrer, cada um a sua maneira, enquanto os não infelizes se limitam a viver num estado de plenitude, a salvo de contradições.
No quarto, a atividade mais constante, além do sono, da televisão, da presença das amigas e dos familiares, era o sexo. O abajur gosta de contar da vez em que ali dormira um rapaz amigo da Moça. Os personagens iam assistir um filme, e o faziam até o rapaz apertar o abraço na Moça, mordendo-lhe suas orelhas. O abajur descreveria aquilo como um grande arrepio, e contara a tentativa de hesitação da Moça. Mas o amigo insistira, beijando suavemente o pescoço dela, dando a uma mão a função de força, provocação as curvas da Moça, e a outra o papel da leveza.
E as mãos seguiam em suas funções até que a moça com gosto se virou deixando seu corpo de frente ao do rapaz, em um ato simultâneo a um delicioso beijo, descreveria o abajur. O abajur ainda falaria sobre o constrangimento dos amigos no dia seguinte. Notaria pois ser algo difícil de ocorrer. Via cenas incríveis por ali, brincadeiras e tatos enlouquecedores, mas se irritava com a constante mudança de personagens. Odiava quando percebia algum fingimento, ou quando não havia troca de olhares.
Se perguntava, se a Moça se lembraria de um amante antigo, um que era mais constante. Um que a fazia rir a toa, que trazia bombons. Um que se dividia com ela. Desses importantes, que se quer tanto e na primeira vez acaba tendo nervosismo, mas que no final é surpreendente. Surpreendente até se tornar paralizante, devido a dor que o rompimento causa. O abajur gostava de lembrar dele. Já a Moça, talvez não.

Não se sabe se o abajur gostava da Moça, ao passo que se sabe o contrário, que a Moça não ligava para o abajur. O abajur não deveria saber muito sobre ele mesmo. Sabia sobre suas reações, seus pensamentos, mas eram todos as custas da vivência da Moça, ou do ódio que tecia aos objetos que cada vez mais ela embutia ali. Ódio por eles não falarem, ódio pelas dificuldades de não saber lidar com as diferenças, e sobretudo ódio pelas expectativas que nunca deixavam de surgir quando algo novo aparecia por ali, e que sempre terminavam da mesma forma.
Não é que o abajur soubesse muito sobre sentimentos, sobre certezas. Mas se tem uma coisa a qual o abajur achava mais triste do que a rotina, era a solidão.

Um comentário:

  1. Meu abajur

    Você sabe tanto ou melhor do que eu que.. as palavras atingem de forma diferente cada pessoa.. fazem ressoar pensamentos ou lembranças distintas..
    Como um corte de mesmo tamanho.. feito com o mesmo objeto cortante.. causa dor em uma pessoa.. pode causar prazer em outra..
    Abajur, quantos estão agora apagados em sótãos ou porões abandonados ao seu cruel destino de solidão.. abajures que um dia iluminaram grandes idéias.. e presenciaram fortes momentos..
    Seu conto me fez lembrar o abajur que fiz na escola técnica como conclusão de curso.. idealizado num papel rascunho.. guardanapo de bar.. lembro que guardei no bolso outros guardanapos para darem lugar a outras idéias..
    Enfim o abajur saiu do papel.. ganhou vida.. feito de materiais reciclados.. e com um com um toque especial de arte.. fiz reproduções de obras de Portinari.. lembro demorei horas.. noites a dentro para terminá-lo..
    Ficou bom, foi dado de presente a uma pessoal especial.. que faz parte de uma lembrança especial.. que tal abajur presencio momentos especiais..
    Hoje talvez ele esteja esquecido de baixo da cama.. em quartos vizinhos.. talvez num lixão.. ou com mais sorte presenciando momentos especiais..
    Tal abajur deixo-o para o passado.. como uma lembrança boa..
    E o que me alegra é que posso idealizar outros abajures.. que ganhem vida em guardanapos de bar.. feitos a embriaguez de cervejas ou sonhos.. e que a inspiração seja uma nova pessoal especial.. e que sua luz enxergue mais que minha retina.. pois enxergarei apenas o que quero ver.. ele de sua posição externa.. terá uma visão mais global de determinados acontecimentos.. e que ele seja guardado com carinho.. e que eu não seja entregue a solidão.

    ResponderExcluir