Entre,sinta-se à vontade. Não repare as estranhezas,as belezas...

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bipolar

Alfredo teve a impressão de ter despertado pela segunda vez naquele dia. Observava a paisagem pela janela quando notou o cenário se movendo com mais velocidade. Assustou-se, o trem só poderia estar desgovernado. Olhou á sua volta, todos pareciam estar calmos, no máximo preocupados com suas obrigações e horários. Alfredo não estava entendendo, notava os objetos ficarem para trás numa velocidade inumana. Tentou respirar fundo e percebeu seu coração pular tão intensamente como o movimento do mar batendo em uma rocha nos piores dias de maré. Estremeceu-se. Então percebeu que seu olhar não perdurava nem mesmo um segundo em cada pessoa daquele trem. O problema estava nele.“Eu vou morrer”, sentia. Seus pensamentos giravam em torno de infinitas coisas, sem conexão alguma entre umas e outras, mas todas lhe davam tontura e aumentavam a sua náusea. Ele sentava-se e levantava-se repetidamente, como uma criança brincando de “vivo ou morto”. Alfredo conhecia aquela sensação. Era ansiedade, mas uma ansiedade absurda, extremada, inimaginável. A comoção aflitiva dos seus sentimentos refletia o formigamento de todo o seu corpo. Parecia que derreteria em instantes. Por sorte, a porta do trem se abriu.

Alfredo correu. Correu tanto, que não notara nem mesmo quando trombava em alguém. As pessoas não perceberam nada fora do normal. Alguém atrasado, locomovendo-se a toda velocidade, por “n” motivos e principalmente para não ouvir sermão do patrão, era comum naquela estação. Talvez em todas. Alfredo correu e correu. “Deus do céu o que fazer”, “O que estou pensando, nem mesmo acredito em Deus”. “Só queria voltar a estar no controle, será que estive algum dia, ou sempre fui escravo de meus sentimentos?”... Alfredo caiu, desmaiado. Seu corpo suportou até mais do que imaginava ser capaz.

De repente, acordou. Estava encharcado de suor. O seu âmago aquietara-se. Alfredo riu calma e desesperadamente. Tentou lembrar-se. Teria tomado café demais? Sempre quis fugir. Só não sabia de que. Teria posto seu plano em prática e teria se perdido? Começou a pensar em todo seu dia, toda sua vida, com uma descrição formidável dos mínimos detalhes. Percebeu que sentia uma paciência indescritível. Podia mapear a sua respiração. Observava todas as coisas por horas e horas, como se fosse a personificação da esperança pulando de canto em canto, em busca do almejado.

Alfredo seguiu seu caminho de volta. Olhava atentamente cada partícula de mundo. Tentando desvendar a formula deste. “Alfredo no país dos clichês”, “A volta ao mundo em um só dia” “A Guerra das estrelas, ou dos egos”. Alfredo brincava consigo mesmo. De todas as coisas vistas, lhe chamou a atenção o fato das cenas serem as mesmas para as pessoas, porém as percepções tão distintas. Como o segredo revelado no olhar do pai que caminhava de mãos dadas com seu filho e sentia felicidade por acreditar estar apenas auxiliando-o a pensar por si próprio, e ao mesmo tempo o olhar do garoto revelava sua vontade de ser como o seu pai. Ou como o debate acompanhado por ele, onde dois vizinhos discutiam o porquê de um cachorro ter deitado justamente no espaço do chão que no dia anterior um homem havia morrido queimado com a explosão de seu carro. Um achava ser um sinal divino, uma espécie de reencarnação, o outro pensava no cão como esperto, procurando apenas se aquecer no espaço ainda quente. Ou mesmo um grupo de adolescentes rindo porque cada um enxergava uma cor de uma forma diferente, uns viam mais claro, outros mais escuro e ainda tinha aqueles que visualizavam outra totalmente desconexa.

O luar iluminava seus passos de tartaruga. Alfredo foi se cansando. Talvez o mundo seja bipolar. Não, múltiplo. Ainda se surpreendia com suas obviedades, mas continuava sem respostas e as vezes tinha medo de tanta relatividade significar que nada era real. Alfredo nem mesmo sabia o que era pior, tudo ter ou não um sentido. Alfredo sabia que nunca seria como alguns dos outros e se agarraria numa verdade absoluta. Só podia contar com a sua inconstância.


3 comentários:

  1. Voltou, enfim!

    Espero que eu também não possa contar apenas com sua inconstância!
    Rsrs

    Acho que consigo identificar nessa relatividade e insistência em não se agarrar a verdades absolutas uma característica de historiador, essa pessoa que busca abarcar o mundo simplesmente por saber que o é impossível e portanto mais se aproxima de seu objetivo.

    ResponderExcluir
  2. A inconstância como rémedio

    Alfredo um garoto sábio.. cheio de dúvidas sobre o presente e o futuro.. dentro de seu pensamento diversas coisas giram.. E assim ele consegue uma interpretação poética sobre a vida. Dentro de um trem que outrora significava o progresso.. Hoje trazem lembranças traumáticas para algumas pessoas.. Principalmente as que embarcam no trem metropolitano no horário de pico pela manhã. Mas deixemos os problemas do transporte metropolitano de lado e voltemos a falar de nosso amigo Alfredo.

    Muitas coisas levam as pessoas a colapso mental.. cada vez mais passamos por pressões diversas.. Trabalho, escola, família.. somos conduzidos a padrões de comportamento e de estética. Sem nem ao menos percebermos esta tirania.. que esta nos filmes, nas novelas, nos comerciais e até nos Bestseller. Então suas sensações precisam ser extremamente calculadas.. não sorria de mais.. não chore.. ou pelo menos se esconda quanto fores fazer.

    Alfredo é bombardiado pela idéia de que tem “ficar” com todas as garotas, ter o melhor carro, ser o mais forte, o cara mais inteligente e rico. Para se impor como uma pessoa boa precisar trilhar por caminhos que não gosta. Apenas desta forma será ovacionado pelas garotas e amigos. Talvez esta sensação desesperada de fugir seja apenas uma vontade sincera de mudar o seu mundo. E pegar as redias de suas sensações.. de chorar e sorrir quando quiser sem precisar explicar porque o faz.

    Mas voltemos a relatividade de Alfredo por onde ele observa minuciosamente todas as coordenas em três dimensões, mais a quarta que é o tempo. Tempo que hoje parece cada vez melhor. Fracionado a uma escala de zero a sessenta. Presa a um relógio de lhe escravisa todos os dias. Assim ele observa a vida de forma surrealista desconexa de direção e sentido. Sem esquecer que uma partícula em repouso possui energia em sua massa. Desta forma ele sabe que tanto na História como na Física não existem verdades absolutas.. tudo encontra-se em transformação e são relativas a novas descobertas.

    E por fim a bipolaridade de Alfredo seja apenas naturalidade de muitos e sua inconstância seja o remédio para uma sociedade doente.

    ResponderExcluir
  3. A inconstância como constante: ao menos há algo a que se agarrar quando o mundo parece estar jogando no time adversário.

    ResponderExcluir